O sincretismo carnavalesco brasileiro

Luciano McSilva
5 min readFeb 13, 2024

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Desfiles das escolas de samba na Avenida Presidente Vargas, década de 1960 — (Rio Antigo/Internet)

Um grande amigo me pediu para escrever sobre o carnaval, da mesma forma que eu escrevo anualmente sobre o Natal. Eu não sabia muito sobre a data, mas uma pesquisa aqui e ali me pareceu que daria uma história interessante, possivelmente com alguns equívocos e outros tanto de subjetividades…. mas vamos lá.

A história do carnaval, mesmo a sua expressão brasiliana vem de um sincretismo carnavalesco. E talvez a melhor forma de contar essa história é dando uma volta pelo mundo.

Já no antigo Egito ou na Grécia antiga há relatos de algumas festas que se assemelham ao nosso carnaval, onde havia procissões aos deuses Isis e Dionísio respectivamente.

Afresco mostrando o Navigium Isidis (Museu Arqueológico Nacional de Nápoles).

Os romanos, como bons apropriadores de cultura alheia, rebatizaram Dionísio de Baco, o deus do vinho, teatro e êxtase. As festas em sua homenagem foram batizadas de bacanais e num mundo sem culpa cristã, dá para entender como se tornou popular (duplo sentido não intencional).

A culpa cristã logo permeou a Europa através dos católicos romanos. Não aceitando competição celestial eles logo proibiram as festividades, sem muito sucesso. Até que no ano 590 da era comum eles fizeram, como bons romanos, o que sempre fizeram bem: se apropriaram da cultura alheia. Decretaram o carnaval como feriado cristão.

Naquela época já era tradição jejuar numa quarentena (que naquela época durava 40 dias) chamada quaresma. E quarenta dias antes da Sexta-Feira Santa determinava a data do feriado, o que ocorre até hoje. E a terça-feira que antecede a quaresma ficou conhecida como terça-feira gorda.

Era o dia da indulgência, quando você podia fazer suas estripulias e comer bastante carne antes de se colocar em jejum e reflexão religiosa sem que as pessoas lhe julgassem. E sabe como era conhecido em latim? Carnevale ou, literalmente adeus a carne!

Cada reino europeu foi moldando seu carnaval a algumas realidades locais. E para entender como o carnaval brasileiro foi criado é importante entender dois deles: o vienense e o português.

A república de Viena era um local bem complicado para relações sociais se assemelhando ao mundo moderno e todos seus amigos cuidando da sua vida. De forma a evitar os buchichos os vienenses passaram a se proteger dos paparazzis indo aos bailes usando máscaras. Dessa forma, eles poderiam celebrar o deus Bacos sem que sua vizinha fofoque isso para os outros e talvez até celebre no anonimato com você.

Ainda hoje se vendem mascaras em Veneza, incluindo a classica do Doutor da Peste. Foto de Rick Steves em seu próprio site (https://www.ricksteves.com/watch-read-listen/read/articles/venice-souvenirs)

Já em Portugal o carnaval tinha mais aspectos de filme de terror de baixo orçamento e era conhecido como Entrudos. Nos três dias que antecipavam a quaresma as pessoas saiam as ruas para brincar em pequenas gangues armadas com vassouras e colher de pau. E a brincadeira era agredir a família do outro grupo. Ainda se jogavam ovos e outas comidas podres, sacos com areais e barro e as pessoas em suas casas que presenciavam essa diversão de camarote aproveitavam para entrar na brincadeira arremessando baldes de água naqueles que passavam em suas janelas. Alguns ecologicamente consciente já fazia da reciclagem do xixi coletado uma alternativa ao desperdício de água.

Chegando no Brasil

Entrudos no Brasil. Foto: Arquivo Nirez/Reprodução acessado no G1 às 13h27 do dia 13 de fevereiro de 2.024.

Como colônia portuguesa, o primeiro Carnaval brasileiro foi fortemente influenciado pelos entrudos portugueses. E no amálgama brasileiro juntou-se o folclore local e a cultura africana dos escravos. E é de se esperar que os entrudos brasileiros eram bem pouco obsequiosos, quiçá necessário como forma de extravasar todas as injustiças sociais típicas do país.

Brasil é Brasil, e a elite que sempre comandou por aqui não estava nada satisfeita com essa manifestação popular. Embora sonhassem com os perfumes franceses recebiam dejetos pouco corteses. Desta forma, começaram a proibir e criticar as brincadeiras de entrudos. No Ceará, por exemplo, a festa foi vetada pela Secretaria de Justiça em 1893, e no Rio de Janeiro, as proibições se repetiram por décadas.

A elite dessa época entendia que só o que vinha de fora era bom e para se diferenciar do passado “incivilizado”, a elite importou uma celebração aos moldes venezianos e parisienses, com bailes de máscaras, fantasias luxuosas e personagens como Pierrot, Arlequim e Colombina. Surgia, assim, o Carnaval dos clubes e da “boa sociedade”.

Além disso a elite não se conteve e tinham a necessidade de se expor e passaram a desfilar pelas ruas até seus clubes, muitas vezes em seus carros abertos de forma a mostrar sua exuberância.

Com o fim das brincadeiras dos entrudos a população mais humilde, vulgo pobre, precisou se reinventar para se divertir sem apanhar da polícia. O jeito foi apelar para a criatividade hoje muito exaltada do povo brasileiro.

Assim como em outras manifestações religiosas a população passou a fazer uma procissão coletiva em um trajeto guiado por cordões. Dentro dos cordões as pessoas podiam dançar, cantar e enfim, se divertir. As fantasias também eram permitidas, mas de forma democrática faziam valer o “vou como eu quero”. Panos coloridos, flores, papel… não havia regras rígidas. Homens e mulheres, crianças ou idosos, pobres ou os poucos ricos que quisessem brincar eram todos bem-vindos. E as ruas voltaram a ser tomadas pelos foliões que outrora jogavam xixi uns nos outros, e agora se contentavam com lança-perfumes e instrumentos improvisados de uma música influenciada por diversas culturas, dando origem ao frevo e o samba.

Com o tempo, as festividades da elite e da população se unificaram, dando origem aos diferentes tipos de Carnaval brasileiro, como os desfiles das escolas de samba no Rio de Janeiro, os bonecos de Olinda com o frevo e os trios elétricos de Salvador. Cada um tem sua história, apesar de se mapear uma origem comum nas festividades e na necessidade humana de espairecer de tempos em tempos. Mas vamos deixar um pouco de curiosidade para textos dos próximos anos. Afinal, apesar de pouco mais de um século de história, o carnaval tipicamente brasileiro, tem muita coisa para contar.

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